A BONECA NOVA
Com as bençãos de Deus, minha filha não foge ao contexto das muitas outras crianças dos nossos tempos. Aos sete anos, cheia de saúde, corre, com sobras extras de energias, ri, brinca, pula, salta... e nada num oceano de novidades que nós, pais contemporâneos, sob certa desculpável pusilanimidade, lhes proporcionamos com o poder do consumo. No meu caso particular, a par disso, procuro incutir-lhe séria noção de valores; de modo que não facilito diante de desperdícios, e enalteço nesta menorzinha os seus traços proeminentes, ainda que precoces, de responsabilidade e de iniciativas próprias no terreno da solidariedade em família e nas suas pequenas relações sociais. Assim, ela vive os seus dias, além de noutras coisas, mergulhada nos seus brinquedos, dentre os quais se destacam muitas bonecas. Mas muitas! Tantas, que ainda agora não me ocorrem mais quais sejam, em meio às mais velhas, quebradas sem braços e cabelos, sujas ou mais ou menos limpas, e as mais novas que andou ganhando de mim, de parentes ou de coleguinhas de escola. Todavia, nesta população avantajada de bonecas da casa, uma se sobressaí: a minha! Isto mesmo! Uma bonequinha de feltro, linda, com caixinha de música de corda embutida, com trancinhas amarelas e fitinhas vermelhas nos cabelos, da cor do vestido. Reservei-me o direito de comprar aquela para mim. E guardo-a como um troféu, ainda na embalagem de plástico florido, amarradinho, enfeitando a minha cômoda. Pois é justo com esta que minha filha volta e meia cisma - mesmo tendo tantas com que brincar, maiores ou menores; bonecas que falam, choram, bebem água, esperneiam, bebês vários com ou sem chupeta na boca, abrindo e fechando os olhos; Barbies, Susies e toda aquela linha de bonecas imitando adultas das quais particularmente não gosto, já que por intermédio delas considero que existe uma exaltação precoce da vaidade em meninas que, ao invés de quererem já tão cedo borrarem suas boquinhas rosadas com batom vermelho, deveriam não mais que brincar de casinha, ou com as novidades tecnológicas dos nossos tempos, que seja... mas nunca alterar o viço natural de uma beleza que lhes é espontânea e que naturalmente, com o passar dos anos, declina, e aí sim, na fase adulta, pode vir a exigir o uso moderado e sensato deste ou daquele cosmético que venha realçar rostos já um tanto desprovidos das cores e da transparência insuperáveis, quando assim se apresentam aos nossos olhos na infância, com toda a exuberância natural própria desta fase incipiente da vida, em si. Mas o que quero ressaltar com esta menção é outra coisa. Comparo esta reação da minha filha à nossa própria diante do mundo no qual vivemos e do qual nos cabe cuidar. Porque, como ela, temos em mãos um planeta portentoso, repleto de vida, de maravilhas naturais e de seres que poderiam em todos os sentidos ser ditosos em caráter permanente - se bem soubessemos preservar o que nos foi ofertado pelo Criador como presente régio do qual, começo a suspeitar com pesar, até o presente momento não soubemos nos fazer dignos! Dentre todas aquelas outras bonecas gastas, sujas, sem roupas, descabeladas, mais ou menos novas e conservadas, volta e meia minha filha retorna à minha bonequinha intacta, linda... não importa o tempo que demore, não importa...Decorrem semanas ou meses e, de inopino, entrando no meu quarto e dela se dando conta, exige peremptoriamente, ou sob os artifícios indefensáveis da adulação, que eu lhe empreste um pouquinho aquela boneca especial. Ao que cedo, com as devidas e severas condições: por pouco tempo. Apenas para que brinque um pouquinho e ma devolva intacta, e tão novinha e limpa quanto no momento em que lha emprestei. O que normalmente ela cumpre, sem targiversar, para daqui a algum tempo ter assegurado o direito de brincar um pouco com aquela simples bonequinha de feltro, que nem fala nem pisca os olhos, apenas toca uma musiquinha...mas que está linda, limpa, novinha, bem conservada... E qual a diferença disso do nosso relacionamento para com o resto do mundo?! Temos em mãos - de há tempos incontáveis! - um mundo lindo, magnificente, e com a capacidade impressionante, de resto, de resgatar o seu próprio equilíbrio frente às agressões seculares que recebe dos maus tratos dos seus habitantes humanos. Mas são estes mesmos humanos, dentre todos os seres - o suposto ápice da evolução terrestre - justamente os que mais o maltratam, depredam, exploram desarrazoada e inescrupulosamente os recursos sem se cuidar do esgotamento irreversível dos mesmos; atacam impiedosamente o ambiente onde vivem e de onde retiram o próprio sustento; e, para arremate, em não bastando, desencadeiam os efeitos desta índole destrutiva uns sobre os outros, numa demonstração tétrica de uma bestialidade incomum mesmo nos irracionais que se reservam a tais ataques apenas movidos pelas leis naturais de sobrevivência... E após todo este portentoso quanto macabro espetáculo dos quais nos descobrimos as maiores vítimas, sonha este mesmo quanto contraditório ser humano com um mundo melhor, limpo, isento de violência, harmonioso, intocado... como também se volta a minha filha para a bonequinha ideal, atraente e bem cuidada, após tratar com negligência maior ou menor a infinidade de outras bonecas que no princípio eram tão belas e bem cuidadas quanto a minha! São os demonstrativos de profunda imaturidade espiritual, as contradições do homem, diante de um bem de inestimável valor, mas em relação ao qual, por força do longo decorrer dos evos e da persistência renitente em seus vícios de convivência no percurso das vidas sucessivas, ainda não aprendeu a atribuir o devido valor e, principalmente, a reconhecer a realidade de que de fato não o possuí! De fato, não é o mundo uma das bonecas de minha filha, que julgam poder maltratar ao extremo de ser nalgum dia descartado como coisa inválida, não mais conveniente diante das novas atrações do dia! Ao contrário dos brinquedos inertes, nosso mundo é vivo, e a vida que lhe lateja em todos os quadrantes é a mesma que nos anima e nos soleniza na incomensurável orquestração do Cosmos. E, tal como se dá com a minha pequena, certamente nada diverso do que já temos nos será oferecido, até ao dia em que sejamos capazes de despertar para a verdade de que nós mesmos é quem forjaremos, enfim, este mundo ideal, zelando-o como merece, conservando-o tal como o Criador nos legou no princípio de tudo - para que então, e finalmente, nos vejamos dignos de que outras maravilhas nos sejam apresentadas aos espíritos depurados para que com elas interajamos de maneira sábia, e conscientes de que o Universo e suas coisas nos são apresentadas de forma perfeita, e de que todas as imperfeições são projeções de nossas próprias limitações interiores. E até lá, até que extirpemos de nós mesmos estas limitações, a boneca nova - o mundo novo, ideal! - só eventualmente comparecerá diante dos nossos olhos deslumbrados, em momentos raros de paz, de êxtase e de enlevo, e de abençoada comunhão com Deus. Amor a todos, Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 26/04/2008
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