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"Estar no mundo sem ser do mundo"

Textos


CRÔNICAS DOS INVISÍVEIS

 

As crônicas dos invisíveis tratam daqueles 'causos' contados, observados, ou de 'se ouvir falar'...

 

Como o daquela vendedora de loja.

 

Nem bem foi contratada, inexperiente que era, descobriu logo a alegria do começo de vida no mercado de trabalho se converter, aos poucos, num choque de realidade.

 

Não! Nenhum lugar de trabalho era um jardim do eden onde a receberiam com aplausos, tapete vermelho, ou mesmo com incentivos. 

 

Para início de conversa, não conheceria de cara o chefe, como achou que seria natural acontecer. Quem a entrevistou era uma sub da sub gerência. Que, por sua vez, foi quem comunicou a resposta positiva da sua entrevista.

 

Apenas dias depois, por uma eventualidade de trabalho, veria, numa reunião de departamento, o todo poderoso que lhe franqueara o emprego. Mas em situação na qual tratava das contingências de serviço de maneira generalizada, sem sequer ter lhe demorado os olhos em cima da figura tímida, encolhida a um canto, por breves segundos que fossem.

 

Assim, esvairam-se aos poucos, como fiapos de nuvem, as suas ideias luminosas de mundo corporativo feliz, onde os novos empregados eram ao menos saudados com um "seja bem vindo", e com alguém pelo menos se detendo a explicar, com atenção dedicada aos recém vindos em certa exclusividade, o quê era o quê. E como, e por que, e quando e onde eram...

 

Pelo contrário, já no primeiro dia, uma vez recebida pela sub da sub, se viu atirada, sem perda de tempo, à azáfama agitada do setor do enorme departamento onde trabalharia, com breve introdução do que teria que fazer.

 

Foi deixada ali, nas mãos de iguais, e à mercê de sua boa vontade para lhe explicar mais detalhadamente, segundo os ritos, o que - mais ou menos - lhe competiria.

 

E era assim que funcionava. Diariamente.

 

Os mais antigos iam ensinando de maneira sucinta aos novatos um serviço a respeito de cujos muitos detalhes era mais do que conveniente ser atento, dedutivo, e mesmo oportunista. Porque não havia muita disposição para se explicar mais de uma vez.

 

E, aos poucos, conforme dominava o cansaço da realidade dos dias que se seguiam, rápidos, percebeu que conviria também ser atenta aos golpes. À desconhecida competitividade selvatica da parte de quem seria capaz de vender a alma e a mãe para galgar promoções obscuras que, todavia, representavam alguns reais a mais no salário no fim do mês. 

 

Se viu na urgência súbita de ter que prestar atenção em erros alheios para defender-se, e de por sua vez não errar, ou pelo menos, errar o mínimo. Pois era evidente o privilégio da manutenção minuciosa aos frios, mas caros equipamentos de informática que não deviam ratear, sobre a necessidade da infalibilidade humana por parte de pessoas de carne e osso, -cada uma delas um caprichoso, porém valioso, universo de nuances psicológicas, espirituais e emocionais que, em caso de falha, raramente mereciam algum cuidado de "manutenção"!

 

Em casos assim, via de regra eram defenestradas. Demitidas, ou, por outra, jogadas fora como objetos imprestáveis, por vezes após anos dando do seu melhor ao estabelecimento mas compreendendo, da pior forma, que o seu "melhor" não atendia às exigências perfeccionistas da contabilidade local para cifrões. 

 

Como, raramente, ocorria com o "melhor" de alguém - e como a nenhum daqueles anônimos trabalhadores descartados como sucata era dado saber, posteriormente...

 

Pois, se soubessem, talvez sentissem brando reconforto...

 

Como sentiu mais tarde aquela funcionária ingênua que, sem índole para o "matar ou morrer" próprios de muitos ambientes profissionais da era atual, foi aprendendo mais, dia a dia, daquele local, mas também de si mesma.

 

Aprendeu, assim, que o melhor de si no processo gradativo de dedicação ao trabalho nunca bastaria, na aferição de valor dos gestores habituados à miopia administrativa do "mata mata" regado à realidade das promoções que, por sua vez, nutriam não dedicação, motivação e crescimento no ambiente, mas sim o próprio canibalismo circunstante do "mata-mata"...

 

Aprendeu, portanto, que, como num manicômio, não importava tanto aprender bem o serviço, se dedicar corretamente e dar o seu melhor - pois, no ambiente do "mata-mata" das promoções, vencia sempre, bem visto aos olhos do chefe inacessível no seu nicho escondido do estabelecimento, o mais capacitado a predador  de competências dos colegas, na lei feroz de sobrevivência local.

 

Aprendeu que, estranhamente, competência não significava o que supunha, antes do seu batismo naquele bizarro mundo real. Competência, antes, era habilidade para derrubar o outro. Caluniar. Criticar desempenhos alheios, quando não se tinha nada melhor a apresentar a título de eficiência perante uma chefia.

 

Finalmente, compreendeu que, contratada para atender obscura função administrativa de um estabelecimento comercial, ainda lhe caberia todo tipo imprevisto de desvio de função, a ser tolerado de boca fechada - em multiplos setores desviados de sua atribuição, até aos serviços particulares prestados às gerências, de 'secretariado executivo', tratando, de telefonemas de família, ao cansativo ir e vir de office boy, tendo que rodar pelas ruas da cidade para pagamento de contas individuais...

 

Tudo isso sob o olhar analitico de colegas predadores, prontos para se valer de qualquer falha sua, ou queixa, a fim de se promover com relatórios e acusações insidiosas para os superiores hierárquicos.

 

E isso durou alguns anos, até chegar ao ápice... o dia em que, enfim, conheceria o inacessível chefe, que estranhamente a chamaria para entendimento particular...

 

...para comunicar a sua demissão!

 

Após toda a ingênua esperança e entusiasmo inicial. A resiliência com absurdos administrativos, praticada no susto do dia a dia, sem ensaios, sem preparação psicológica... tendo que lidar do melhor modo com as responsabilidades que lhe competiam, combinadas às extemporâneas e indevidas que lhe eram exigidas...

 

...e da melhor forma. Sem faltar um dia... para, afinal, aquele chefe, que não a conhecera na chegada, que sequer talvez tenha se dado conta da sua identidade na contratação para além de mero número de registro no cadastro de funcionários, destinado a preencher uma atividade funcional... para afinal conhecê-lo pessoalmente, e somente ouvir, sumária, a sua dispensa alegando apenas, na frieza mecânica de sua voz polida, necessidades administrativas...

 

Foi assim que, muitos anos depois de passada essa história, ouvindo-a desta personagem "invisível" na vastidão do mundo, me tomei de terna, solidária empatia, e lamentei as agruras por ela vividas, mas a sua resposta me surpreendeu. E provou que existem experiências durante alguns anos que equivalem, em termos de amadurecimento e de crescimento íntimo, ao que para outros exigiria o decurso de toda uma vida.

- Aquele chefe que só quis me conhecer ao me chamar para me demitir não sabe até hoje que me fez um favor, pois apressou os meus planos. Fiz por aquele lugar o melhor que pude, nunca me demovi dos meus valores de caráter, de compromisso e dedicação, mas a verdade é que eu não aguentava mais. Então, quando ele me chamou, já tinha pronta a minha carta de demissão. E outro lugar melhor em vista, pronto para me contratar...

 

Disse isso, finda a sua história. E, com um sorriso feliz, tranquilo, saiu com o seu poodle saltitante, preso pela coleirinha, passeando pelas aleias de um belo parque num sábado de outono, sob o calor brando do sol...

Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 13/06/2022
Alterado em 13/06/2022
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