AS SETECENTAS CRUZES*
Parecia até que estávamos em Copacabana. E estávamos! Só que o verniz lascou. Por debaixo, surgiu a madeira podre...pútrida! Fétida!
Por debaixo das cores idílicas do cartão postal, um rombo foi lascado, hediondo - por intermédio do qual se fez presente o cheiro, o temível odor da podridão!
Parecia que estávamos em Copacabana... e estávamos! Dia chuvoso após trinta dias de seca, de aridez, de fornalha - talvez que de um brado à redenção! Trinta dias de seca. Trinta sóis à pino, crestando a pele, tentando acordar o espírito, que, por debaixo do massacre terrível do ópio, recusa-se a acordar!
Mas agora eu vi!...
Surgiram setecentas cruzes em Copacabana, em plena areia. Em pleno e assustador paraíso. Em pleno cartão postal morto, surreal - eu vi o sopro temível da vida!
Setecentas cruzes nas areias. Setecentas vidas exterminadas em menos de três meses. Eu vi! Mas quantos não viram! Quantos não querem ver!
Queremos ver a praia, o mar, as ondas, o azul do céu, o colorido das barracas, o alarido dos banhistas, o sorriso fantasmagórico das populações e o olhar hipnotizado dos turistas! Queremos ver somente o sol, os biquinis, os corpos esculturais, a eterna farsa, o efeito hediondo da droga nociva! Queremos delirar! É bom! É fuga! Queremos não ver o que é...dêem-nos, por Deus, mais do que não é!
Não sabemos de cruzes, não sabemos de vidas - queremos apenas as nossas vidas! Não queremos nos mexer, não queremos ver... não queremos nem mesmo nos rever para além da mesquinharia do que somos! Queremos aninhar em nós mesmos e resguardar o estigma - a liberdade para se gostar um pouquinho do perigo e da violência; afinal, quem não bate boca ao se julgar com a razão, ao avançar um sinal de trânsito em pleno dia sobre um idoso, por questionáveis questões de pressa?...
Está tudo bom, está tudo bem, nada temos com isso! Que vejam as autoridades - neste dezessete de março, que apenas as autoridades tenham visto as areias de Copacabana!
Nada temos com isso, que podemos fazer?
Alguns viram e se espantaram. Que horror! Eu ia à praia, tudo tão colorido...o Pan vem aí! E estas cruzes horriveis -bem aí?!
Não combina, não combina! Não combina, logo agora, a purulência extrema da gangrena social fazer presença, bem aí! No ícone; no coração do cartão, na sala de visitas toda decorada, escondendo o caos catastrófico dos outros cômodos, onde as vidas são ceifadas banal, brutalmente! Onde crianças morrem arrastadas, aos pedaços, por um carro em disparada; onde jovens são baleadas a sangue frio nas escadarias de um metrô; onde lágrimas choram a paralisia corporal que poda os sonhos de toda uma vida, os órfãos de pais, a moça no ônibus 174, os bombeiros assassinados, a guerra urbana - o terror!
Não! Não em Copacabana, por Deus! Setecentas cruzes, setecentas vidas - que horror!
Queremos apenas mar e sol! Que gente mais impertinente, insistindo em mobilizar, teimando em lembrar que não dá mais, que basta! Que é hora de se engajar na luta pela sobrevivência, que a ninguém mais é assegurada a vida, do nascer ao se por do sol de cada dia - a ninguém mais! Nem em Copacabana!!!
Eu vi! Eu vi, por Deus, as setecentas cruzes! E, junto a elas, alguns guerreiros; alguns anjos; alguns heróis, imbuídos em nova Cruzada em prol da Vida!
Alguém mais viu?! Alguém mais agiu?!...
Não me encha com isso! Eu quero apenas ir à praia!...
Interessante é que, após trinta dias, por coincidência, chovia na praia...chorava o céu, chorava a areia...Chove na praia!
De quem será, provavelmente nas próximas horas, a cruz de número setecentos e um?!...
Que Deus olhe pelo nosso Brasil.
*Referência às setecentas cruzes postadas hoje nas areias de Copacabana, em protesto pela calamidade da violência urbana, que no Rio de Janeiro vem atingindo picos alarmantes.