EM REVOADA ATÉ O CRISTO
Em espírito, o Rio de Janeiro e o Brasil devem ter acompanhado aqueles pilotos de asas delta e parapentes em revoada até o Cristo Redentor, de luto, como pássaros sombrios, taciturnos, em desesperança, num brado silencioso de paz - talvez que buscando, no silêncio majestoso das alturas em torno do Colosso simbólico da cidade, um arremedo desta mesma esperança... Vendo esta cena, e pairando longe e alto na imagem impressionante, tanto mais por representar a comoção sem precedentes no Brasil em torno desta atrocidade praticada contra um anjo inocente, lembrei-me, de repente, de uma carta, que redigi aos vinte e oito anos de idade a meu filho, em 1993, quando ele tinha menos de um ano. Quando, aparentemente, tudo já era um prenúncio do que hoje é... Lembro-me, ainda hoje, da cena. Ele brincava no berço, também como um anjo - que todo pequeno é! - e eu, sentada a pouca distância, sonhava, pairava talvez que também nas alturas próximas ao Cristo, desejando, como toda mãe, o mundo melhor possível para os anos vindouros na vida daquele menininho puro entretido com os seus brinquedos. Relendo agora este manuscrito tão antigo, e surpreendentemente de conteúdo apropriado aos dias sombrios que todos vivemos, resolvi publicá-la - compartilhá-la com todos vocês. Que não seja mais uma carta dirigida apenas ao meu filho, já naqueles distantes idos - mas a todos os filhos maiores e menores dos pais neste nosso imenso país. Que nunca mais se repita um João Hélio! Que todos os pequenos desta nação tenham, desde já e de futuro, direito à felicidade, à segurança, e à sua integridade no país onde nasceram... "Meu filho, Vendo você brincar em seu berço, imerso no seu mundo mágico, lhe escrevo do meu hoje mundo real. Escrevo para lhe contar sobre este mundo estupendo, no qual você ainda não vive nem poderá viver. É um mundo de aventuras, de maravilhas secas e de temores úmidos. Vivemos em dias de barulho e de sol. Rodeados de uma quantidade tal de gente que parece não haver mais lugar para todas; e, no entanto, o maior mal que ainda devasta as populações é o do desamor e o da solidão. Vivo em dias de robôs e de computadores, de física quântica e de Deus nas bocas; presencio maravilhas de cores e de máquinas, e todos consideram a realidade virtual um assombro, esquecidas, estranhamente, de que isso não é tudo, não é o ponto de chegada; nem mesmo é o início da estrada. Todos olham para essas coisas como se nada viesse depois. De certa forma talvez nada venha mesmo. Nada que condiga com o que satisfaz hoje, e que se tenha agora como a realização "cibernética" do indivíduo. Mas disso, eu não sei. Pois será o conteúdo do seu mundo; e dele, saberá você. Não sei porque sinto a necessidade de lhe escrever sobre essas coisas. Os porquês muitas vezes são inexplicáveis. Talvez o porquê disso nem seja um "porquê"; seja algo fútil, vazio - falta do que fazer. As pessoas hoje em dia sempre têm algo que fazer, ou pelo menos têm de dar a entender que fazem. Mas a verdade é que mesmo para aquelas que aparentam fazer muito, ainda falta fazer muita coisa; talvez falte mais para essas do que para que as que aparentam fazer menos, ou nada fazem. Essa é uma linguagem que talvez você não compreenda, porque diz respeito à minha realidade. Uma realidade na qual os homens não são nada sem máquinas e sem dinheiro, na qual o ter é a medida do ser. Agora mesmo lhe escrevo pensando em comprar o seu vídeo game para alegrar as suas horas no futuro, imaginando o que será este futuro, e que talvez nele o estudar muito não lhe seja tão útil quanto o computar, o informatizar muito neste mundo utilitarista, esquecida, eu também, de que o há sete anos para o ano dois mil, por certo, não traz a mesma escala de valores que há de imperar nos dias dos que viverão nos anos dois mil e vinte e quatro. Grandes coisas vêm acontecendo neste final de século. Daqui a sete anos, no ano dois mil, que há de ser para a criança um mero vídeo game? Espero mesmo que nada - afirmo-lhe, pressurosa. Afirmo-lhe pressurosa, porque este é o meu panorama de mundo, meu filhinho, talvez um tanto mórbido, apenas por ser o meu panorama. Presencio tempos de extremos caóticos; ou de euforias alucinantes ou de crimes monstruosos, tempos excessivamente materiais. Infelizmente as pessoas se contentam com isso - e se conquistam paciência e capacidade infinitas para projetarem um "avião invisível" ou um gigantesco e poderoso radar dirigido ao espaço em busca de sinais extraterrestres, falham miseravelmente na conquista da paciência e da tolerância para com um erro que seja do próximo, como se fossem deuses infalíveis e implacáveis no que consideram a sua justiça, pessoal e indiscutível. São épocas de lágrimas verdadeiras e sorrisos efêmeros e vazios. De uma aridez silenciosa e inigualável no meio do tumulto barulhento dos carros, que lotam as vias das semanas. A noção de afeto é coisa vaga, quase inexistente, com ocasional similar distante em atitudes que sofrem uma metamorfose assustadora, ao sabor de caprichos e contrariedades alheias. De modo que o afeto, que deveria constituir a nutrição, a vida real dos seres, existe, sim, se você se esfacelar, se anular, e jamais discordar dos outros, ainda que dos maiores desvios da razão. Se você pulverizar a sua individualidade e compactuar, se vender, virar mero joguete - então, talvez, assim provoque algo indistinto entre afeto e conveniência. E você segue a vida carregando a sua cruz. Os mais fortes sobrevivem e compartilham; os imortais sobrevivem e vegetam; os mais fracos - para o mundo - não suportam e se vão. Ninguém sabe para onde; talvez que para um mundo melhor. É para onde eu quero que você siga, meu lindo Andrezinho: para um mundo melhor. Sem falsidades, sem mentiras; um mundo de pessoas verdadeiras na melhor essência de seus seres. Um mundo ao menos melhor equilibrado entre máquinas, concreto, Deus e Natureza; no qual enfim se dê um basta na construção de avenidas ásperas onde deveriam existir flores. Porque basta de metal, de concreto e de aço! Basta destas paredes sólidas que tanto nos asfixiam! Basta de seres humanos feitos de cimento, rigorosamente informatizados, funcionando à guisa de números digitados e de disquetes programados! Chega de raios laser, chega de espaçonaves, chega de fumaça e de barulho; chega do gosto de fel da ferrugem que corroe nossos membros emperrados no desamor! Que se ouça mais o soprar dos ventos, que se veja mais a cor dos mares e dos céus! Que se aspire o perfume das manhãs dos campos, reconhecendo-lhe finalmente o valor! Que o ser humano tome consciência e exteriorize afinal as suas cores próprias e autênticas, o aroma da sua aura, a essência e a razão maior da sua vida! Que o Homem retorne de novo à Vida de Deus e aprenda novamente a ser somente um Homem! Um Homem não vive em função de apêndices, sua razão de ser não são os acessórios! Um Homem precisa apenas ser Homem, meu filho, e reconhecer em tudo em volta o simples direito de Ser - e de viver! Que este Ser, pura e simplesmente, lhe conduza os passos para ser feliz, Andrezinho, num mundo melhor. Num mundo humano! Sua mamãe. Christina" Rio de Janeiro, 20/06/1993 Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 14/02/2007
Alterado em 16/02/2007 Copyright © 2007. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |