CORDEL DA ETERNIDADE
De volta de uma semana de viagem de férias na cidade de Fortaleza, quero escrever logo sobre a experiência comovedora, pois a passagem dos dias se encarrega rápido demais de nos acordar do encanto mágico daquelas paisagens paradisíacas para o roldão arrebatador das obrigações e correrias da cidade grande. Praia de Cumbuco, um dos cartões postais mais lindos do Ceará. Conversávamos com a simpática família de Osasco, marido, esposa e dois meninos, quando vem o senhorzinho empunhando seus livros de cordel nas mãos. Incertas, interrompemos, eu e a paulista bem humorada, nossa conversa sobre alguma coisa de que não consigo me lembrar agora, desviando irresistivelmente a atenção para o personagem pitoresco, típico de nossa cultura nordestina. Considero-os, desde sempre, carismáticos - quase hipnóticos. E sempre e sempre as minhas visitas periódicas nas terras do nordeste justificaram este meu fascínio. Assim, observando o homenzinho franzino, mas de presença marcante logo à primeira vista, analisei com discrição, enquanto nos dispunhamos a ouvir os versos que, sem cerimônia, já ia improvisando a respeito do grupo de turistas do sudeste que tinha à sua frente. Aparentava, no rosto vincado e marcado pelos anos incontáveis de rudeza, talvez que mais de setenta anos. Não tinha isso tudo - pouco depois soube, tomando conhecimento de uma fatia modesta de sua rica vida de andante. Aceitei de suas mãos vincadas os livrinhos que nos exibia enquanto se dividia entre conversar conosco e improvisar sua poesia cheia de inspiração e sabedoria. E, conforme fui folheando, a sensação de encanto ainda desta vez se avantajou. Françuar G. Cruz, é o seu nome, grafado na autoria de capa. Os dois livrinhos intitulavam-se Cumbuco em Poesia e O Encontro de Patativa com Luiz Gonzaga no Céu. Deus do céu! - eu me assombrava, mergulhando na leitura ainda que ligeira daquele momento, enquanto o senhorzinho Françuar prosseguia na sua reza poética agora dirigida ao menininho paulista que o escutava, entre absorto e curioso - quanta sabedoria em palavras organizadas de forma a um só tempo tão simples e tão bem construída! Muitos erros de português. Natural que assim fosse. O trabalho de Françuar tem o apoio da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estadual do Ceará - talvez na editoração. Mas percebe-se que o corpo de texto é intocado, preservado na sua originalidade, muito provavelmente para conservar a sua beleza arrebatadora e inculta, quanto o são as paisagens virgens de muitas das praias celestiais daquele estado fértil em artistas de valor! Enquanto, meus amigos, sobejam hoje em dia representantes de uma arte traquejada em vestir em fogos de artifício embriagadores um produto comercial oco, mas de fácil digestão, embora fútil de conteúdo, o que se observa nestes representantes genuínos de nossa cultura é justo o contrário! E é por isso que encanta! É por esta razão que, lendo os versos de Françuar, nutrimos à saciedade a nossa alma sedenta deste tipo de cordel da eternidade, onde, de entremeio às rimas caprichosas, encontramos a descrição tocante e fiel das vidas cotidianas das gentes do nosso povo nordestino - as dificuldades do pai desempregado com os filhos para criar; a fé robusta, intuitiva e mais valiosa, bem a que sustenta esta gente na luta áspera do dia-a-dia sem esmorecimentos! Eles sabem que Deus supre! E também que o Criador de todas aquelas belezas estonteantes das praias do nordeste não erra, jamais - ainda que no meio do mais acre sofrimento! Embevecia-me, lendo aquelas linhas, compreendendo, enternecida, que tudo o que a população enervada das grandes cidades esquece e só consegue se recordar ao custo de uma busca espiritual e material intensa, aquele povo aprende de maneira natural e precoce, nas agruras romanceadas de suas longas histórias de vida! E Françuar é bem um exemplar típico desta afirmação! Enquanto me dispus a apanhar o dinheiro em minha bolsa para comprar os dois livrinhos, ele resumiu a sua história para a amiga paulista com quem eu conversava. Perdeu a mãe no seu parto. Foi criado pelo pai, mas, ano e meio depois, ele também se foi! Responsabilizou-se, então, por Françuar, um padre francês - desconfio que seu nome se origina bem daí; talvez fosse François, que no decorrer de sua vida desde então ele não tenha sabido grafar direito. Pois passados alguns anos, morreu também este padre, o seu esteio! E ficou o menino ao léu neste mundo! Deve, então, somente Deus saber o tanto de dificuldades e episódios inacreditáveis que o poeta atravessou nos mares revoltosos da vida para chegar até aqui, até hoje - vivo, apesar de tudo! - sobrevivendo, não sei se só disso, de sua literatura de cordel vendida nas praias belas do Ceará! Transcrevo abaixo algumas de suas estrofes aos amigos leitores, Elas são a prova viva de que a essência do Cordel, muito acima de uma representação cultural a mais dentre a variegada riqueza regional de nosso povo, é também componente indispensável à nossa sobrevivência pela eternidade afora, nas muitas vidas que ainda virão! É nutrição para a alma, meus caros! E, num mundo onde tudo o mais, por melhor que seja, mostra-se passageiro, não duvidem de que é exclusivamente deste alimento que necessitamos para que hoje, quanto também no futuro e após as nossas transições, possamos facear com dignidade as hostes inefáveis de Deus! Quanto menos tú espera Vem tudo pras tuas mãos Você pensando em Deus O autor da Criação Se tú não se desespera Tem recursos na mansão Mas eu sou Françuar Que sonho com a poesia Eu trouxe do nascimento A santa sabedoria As coisas melhores não há Do que a diplomacia O homem com esperança Sofre mas é vencedor Vai na casa do patrão Vim ocupar o senhor Que os recursos das crianças Lá em casa já acabou Mas o homem preguiçoso Tem uma cabeça fria Mesmo em casa sem nada Os filhos em agonia Assim nosso Poderoso Lhe castiga todo dia Aqui eu termino o verso Agradeço verdadeiro Como é lindo o universo Falando nos cubuqueiros Que reconhece o poeta Que rima dentro da meta Pra não fugir do roteiro Que Deus lhe proteja e recompense Mestre Françuar! Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 25/07/2011
Alterado em 25/07/2011 Copyright © 2011. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |