Zênith

"Estar no mundo sem ser do mundo"

Textos


O MICO

Ainda há pouco tomava um banho, após um dia cansativo de trabalho, desprevenidamente dando azo a pensamentos desagradáveis, que não servem para nada que não seja abater o nosso humor por pouca coisa. Mas, pouco após, e como se recebendo a cutucada habitual do meu mentor desencarnado do lado de lá, algo me ocorreu - algo de que já sei, cosncientemente, há muito tempo:

- Mas que coisa! - disse, para mim mesma - Tenho que ficar atenta para redimensionar os meus problemas, minhas lembranças desagradáveis sobre coisas já perdidas lá pra trás do tempo, que não me servem, absolutamente, para nada!...

E prossegui na reflexão oportuna:

- Afinal, em várias ocasiões, olhando para um esplêndido céu noturno estrelado, isto já me ocorreu: o que somos nós, bem como as nossas preocupações cotidianas, diante deste espetáculo de vida e de Criação aí pra cima? Como ousamos, diante de uma conscientização justa de nossa pequenez ante o espetáculo do Universo acima de nós, ainda considerarmos como coisa grande nossos pequenos melindres para com os outros; nossas preocupações cotidianas, e acerca daquilo que ainda há de vir?

A ficha caiu. E me recordei também de que um auxílio poderoso para nos reposicionarmos na percepção da nossa proporção exata diante da vasta realidade da Vida é um pouco de humor. E, em tempo, recordei um episódio recente que compartilharei com você, leitor amigo, e que vivi recentemente; e, se bem na hora não tenha achado muita graça, nada como um dia depois do outro para, passadas as preocupações daqueles momentos tensos, só restar nas nossas recordações o que vale a pena, a fim de que possamos encarar os desafios da vida de forma mais leve, mais desanuviada.

Eu passara o sábado sentindo uma dor incômoda na região frontal do tórax e nas costas. E, avisada como de costume, e com repertório de determinados problemas cardíacos, em chegando a noite sem que o impasse se resolvesse a contento com repouso ou com remédios, achei de bom alvitre procurar logo o posto médico mais próximo para o necessário desencargo de consciência. Não poderia mesmo atravessar a madrugada sozinha com meus filhos em casa mergulhada na ansiedade, após a semana estressante já atravessada que, desconfiava, era a causa maior de todo aquele mal estar.

Intimei meu filho mais velho a me acompanhar. Como meu marido estivesse no plantão do serviço, minha mãe se dispôs a me aguardar em casa com minha filha mais nova. Assim, por volta das nove e pouco da noite, em meio ao frio enregelante deste último fim de semana, me desabalei, com certo grau de nervosismo, em busca de atendimento médico e exames que me tranquilizassem quanto às causas do que sentia.

Dei entrada no posto, como esperado lotado de gente na noite de sábado. Cumpri a burocracia usual, e me dispus a esperar a vez para um exame de eletrocardiograma e outro de sangue. Meu filho, meio emburrado até certo ponto, meio a meio por estar perdendo o futebol e pela fome, por ainda não ter jantado.

Decorreu cerca de uma hora e meia. O enfermeiro que fez a triagem inicial avisou que provavelmente o atendimento seria mais demorado que o esperado. Só o resultado do exame de sangue demoraria cerca de duas horas. Assim, suspirando, nada nos restou senão esperar.

Feitos o eletrocardiograma e o exame de sangue, sentados na sala de espera lotada onde usualmente a carga rotineira de ansiedade é elevada, dada a quantidade de gente metida em gêneros diversos de aflição, procurei voltar minha atenção para o que exibia a tv postada na parede logo ao lado, exibindo naquele momento a novela do horário das vinte e uma horas. Procurava, também, ignorar o mal estar de meu filho, amoladíssimo, mas conformado, sentado ao meu lado. Até que, em dado momento, ele me disse, olhando de lado, e de dentro da mesma pachorra contrariada com que esperava pacientemente o fim daquele castigo:

- Você está com sapatos diferentes nos dois pés.

Olhei...

Vergonha!!!

Como pude sair de casa, por mais nervosa estivesse, sem reparar no que calçava ao ponto de vestir um mocassin gelo num pé e um magenta no outro?!

Acrescia à constatação o fato de que ainda calçara, na pressa, meias horríveis, que também não combinavam com nenhum dos dois sapatos!

Estupefata, presa de uma vontade de rir idiota e em esconder os pés para debaixo da cadeira onde me sentava, pensava que só agora entendia o ar penalizado que durante algum tempo reparei estar a me dirigir um guarda de plantão de pé a meu lado, sem que atinasse com a razão daquilo. Atribui, de início, a expressão condoída e inexplicável do homem ao fato de que talvez ele se condoesse de mais alguém mal de saúde, naquela noite fria!

Momentos depois me chamaram para o resultado dos exames e para o diagnóstico. E, deixando meu filho à espera, saí correndo para o consultório, separado daquele setor lotado por uma porta larga.

Mal sentei, reparei que o médico assistente olhava para meus pés e, disfarçadamente, ria. E antecipei minhas explicações, morta de constrangimento:

- Saí tão nervosa de casa que nem reparei ter calçado sapatos trocados! - disse, com um risinho choco.

- Não reparei nada... - devolveu a médica, gentil, enquanto o outro médico devolvia um abanar de cabeça solidário. O que não serviu para me consolar. "Vão Morrer de rir tão logo eu saia." - imaginei.

De posse dos resultados, graças a Deus sem nada comprometedor em minha saúde cardíaca como temia, tornei a sair correndo como louca porta afora, preocupada em disfarçar os pés. E, o mais rápido que pude, convoquei meu filho - entramos no primeiro táxi que passou.

Na correria, esqueci, por último, o meu guarda-chuva novinho no posto. E desaparecemos na noite fria.

Eis como uma noite que tinha tudo para ser recordada como motivo de sofrimento, nervosismo e ansiedade acabou sendo redimensionada, convertendo-se em boas gargalhadas que darei durante um bom tempo, sempre que me recordar deste episódio.

"No final, tudo dá certo. Se não deu certo, é porque ainda não chegou no final..." Fernando Sabino


Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 01/06/2011
Alterado em 01/06/2011
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