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FÚRIA DE TITÃS

Propositalmente selecionei as imagens da versão de 1981 deste clássico dos épicos para que os leitores, dentre os que pretendem ir ao cinema assistir à atual, do diretor Louis Leterrier, sem ter visto a da década de oitenta, possam estabelecer certos paralelos entre a multiplicidade de personagens existentes em uma e outra, com destaque para os inspirados na mitologia grega, e a partir disso formarem a sua opinião.

Tenho a primeira versão na minha videoteca, e, a despeito das limitações de recursos na área dos efeitos especiais naqueles tempos em que nem de longe se cogitava assistir a qualquer coisa da perspectiva 3D, - como hoje acontece, com tendência forte a virar febre em poucos anos ante a perspectiva da chegada dos televisores com esta tecnologia - sob certos aspectos, e surpreendentemente, ainda continuo julgando-o melhor, agora que já conferi a repaginação da história com Sam Worthington interpretando o semi-deus Perseu.

O Fúria de Titãs de Leterrier é uma profusão sem fim de arrebatamento ao nos deparar com precisão técnica os cenários grandiosos da antiguidade grega. Sam Worthington, o australiano mais cotado atualmente para se elevar à constelação Hollywoodiana composta por Russell Crowe e alguns outros estrangeiros com luz própria suficiente para se destacar da infinidade de mediocridades da hora que passa, dá peso inegável à trama desenrolada na antiguidade grega, entre personagens mortais e deuses do Olimpo - dentre os quais Zeus, o maior do panteão, de quem Perseu é filho com uma mulher mortal.

Depois de lançado ao mar com sua mãe pelo rei enciumado de sua paternidade divina (Zeus, que seduziu-lhe a esposa à sorrelfa usando a sua aparência) Perseu segue sua vida sob a proteção de uma família de pescadores, que o resguarda de Hades, irmão de Zeus, deus da morte e dos infernos (interpretado por Ralph Fiennes, por sinal candidato deste ano à Framboesa de Ouro, aparentemente mal cotado pelos críticos que julgam o seu desempenho duvidoso).

Ao tomar conhecimento de sua filiação semi divina, todavia, Perseu se recusa a sustentar a adoração incondicional a Zeus e demais deuses, renegando-os, como o vinha fazendo a cidade de Argos, que foi por isto duramente punida por Zeus ao permitir que Hades desencadeasse sobre ela um cortejo arrasador de destruições como castigo exemplar pela insolência de seus reis e de sua população. Perseu insiste em ser um humano comum, na convicção de que como um mortal qualquer haveria de suplantar a necessidade de auxílio divino na tarefa que acaba lhe cabendo, ao aportar em Argos - matar o Kraken, criação monstruosa de filiação de Hades, que, por despeito, inpira com sucesso seu irmão Zeus a permitir que sua criatura destrua definitivamente a cidade amaldiçoada.

Com isso, Perseu se reune a outro guerreiros destemidos para enfrentar os piores titãs, até o seu triunfo final, a fim de evitar também, e de resto, o sacrifício da princesa Andrômeda ao Kraken em determinada data, como Hades determinara.

No cortejo de criaturas horrendas defrontadas pelo semi-deus e filho do maior dos deuses - e aí se concentra todo o brilho da história, na primeira como na atual versão! - veremos Pégaso, o cavalo alado; as bruxas que conhecem o segredo da destruição do Kraken, seres canibais terríveis, que enxergam através de um único olho portátil. Até alcançá-las, e aí descobrirem que o único caminho para a aniquilação definitiva do Kraken é o confronto vitorioso da medusa, (mulher amaldiçoada por Atenas que a converte, despeitada de sua beleza, em criatura metade serpente, metade humana, e cujo olhar transforma em pedra qualquer mortal que a encare de frente), arrancando-lhe a cabeça, os heróis lutarão durante o caminho com titãs dignos, como com escorpiões gigantes e harpias. Mas é neste ponto, penso, que entrou o empobrecimento da história, comparativamente à versão de 1981.

Se no primeiro Fúria... de Desmond Davis tínhamos escassez de recursos técnicos, destes que deslumbram platéias hipnotizadas ante o festival de efeitos especiais que muita vez compensam um roteiro débil ou uma trama enfadonha, doutra feita, contudo, houve mais leveza, mais fidelidade e carisma no trato de um tema que pede um mínimo de comprometimento com a mitologia grega que se quer explorar, a fim de se produzir um filme épico digno. 

O Olimpo, naquela primeira versão, era mais participativo. Deuses como Atena, Hermes e Afrodite, e Poisedon - o tutor do próprio Kraken! - desempenhavam papéis-chave para a composição final de um enredo cujo atrativo focava justo esta convivência mágica entre homens e deuses. Isto, neste atual episódio, foi bastante descaracterizado, ao que parece, ante a necessidade obsessiva de se apresentar uma narrativa presa entre a intenção indistinta de se oferecer alguma explicação psicológica frouxa e mal alinhavada sobre a necessidade humana de se libertar do aprisionamento e da dependência da interferência divina no curso de suas vidas, e o propósito de se hipnotizar a platéia com uma chusma de lutas entre homens e titãs horrendos, que, no entanto, foram criados e apresentados de forma quase infeliz ao público expectador petrificado diante de um tumulto atordoante e confuso durante certos combates, como o havido contra os escorpiões gigantes, por exemplo, no qual o 3D teve um efeito visual desastroso, já que não nos permite distinguir com exatidão quase nada da ação frenética dos personagens.

Enquanto na primeira versão temos, além da fascinante e terrífica Medusa (criada pela digitação tosca da época), as bruxas de um só olho, contando ainda com cérbero, o cão de duas cabeças, e com toda a espantosa população do reino das sombras habitada por Cálibus - este mais coerente no seu aspecto desfigurado e assustador (nesta versão, é ele o rei despeitado da traição da esposa, que a jogara ao mar com Perseu ainda bebê, o fruto do assédio sedutor do deus Zeus; na versão antiga, era Cálibus o filho amaldiçoado da deusa Atena), não existe no atual Fúria uma profusão fidedigna de seres de fato pertencentes ao rol das criaturas fascinantes existentes nas lendas mitológicas gregas. E não existia no primeiro filme a criatura do deserto incoerente do ponto de vista mitológico - o tal feiticeiro de uma clã de olhos azuis reluzentes, que no final de tudo acaba tornando sem pé nem cabeça a morte do Kraken por fitar o olhar petrificante da Medusa - já que este feiticeiro morre doutro modo ao confrontar a criatura-serpente, cujo efeito mortífero só agia, ao que se depreende desta cena, sobre os humanos!
 
De resto, Zeus, na pele de sir Laurence Olivier, nos surgia naquela primeira paginação de há décadas de maneira muito mais leve, cativante, e convincente, vestindo túnica branca alvinitente com efeitos luminosos azulíneos - mais agradável visualmente do que o figurino de passista de escola de samba, profundamente cafona e infeliz, envergado pelo excelente Liam Neeson, que, com o seu talento indiscutível, unicamente, acaba nos fazendo esquecer o choque da idumentária mal inspirada criada para os deuses do Olimpo - todos eles, neste novo Fúria de Titãs, à exceção de Zeus e de Hades, completamente apáticos e inócuos em relação à trama.

No todo, o filme pode ser considerado bom, principalmente por quem fica somente com esta sua segunda versão e com a força da atuação de Sam Worthington para respaldar a combatividade viril do personagem principal. Os efeitos visuais são realmente de primeira, e, afora o tiro pela culatra do visual 3D que, e ao contrário da leveza mágica de Avatar, nos faz ficar tontos e atarantados em certas passagens, comprometendo o bom entendimento da história, assisti-lo torna-se, no final das contas, um programa bem digno para o fim de semana.

Mas aconselho a quem o assista que evite ver a primeira versão, de resto provavelmente difícil de ser encontrada dentre os dvds antigos das prateleiras de promoções das Lojas Americanas. Fiquem com o novo. Ou corre-se o risco de, estranhamente, chegar-se à conclusão de que o filme da década de oitenta, apesar de toda a desvantagem técnica, ser indiscutivelmente uma diversão melhor e mais gostosa de se assistir do que este Fúria... atordoante, que nos chumba na cadeira do cinema, mas pouco encanta aqueles amantes da autêntica e encantadora mitologia grega. 
Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 23/05/2010
Alterado em 23/05/2010
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