Zênith

"Estar no mundo sem ser do mundo"

Textos


O RIO, E EU, DE LUTO...

Quando a Alessandra carregava a sua barriga, toda feliz com seu primeiro bebê, de vez em quando aparecia no setor da Justiça Federal onde trabalho com a sua irmã, de quem sou amiga. 

A Alessandra - esta mesma, a mãe do menino João Roberto, o "João Hélio" da vez! - é uma mulher ainda muito jovem e bonita; estava radiante com a sua gravidez. Trabalhando de longo tempo no mesmo setor, tive a oportunidade de acompanhar, pelas novidades que sua irmã trazia, a fase do seu casamento, da sua gravidez; volta e meia encontrando com ela no caminho para o trabalho ou nos corredores, trocando uma ou outra palavra ou conversa breve. A Alessandra sempre foi assim - uma morena bonita, de sorriso largo e belo!

Hoje, nas imagens do enterro do seu menininho João Roberto, via ali uma mulher jovem cujo sorriso, outrora, fora lindo - subitamente envelhecida uns dez anos, sob as vergastadas impiedosas, hediondas, da dor.

João Roberto parecia com ela. A foto divulgada pela imprensa atesta isto. O primeiro filho; segundo comentários ouvidos esta semana, o primeiro grande orgulho de seu pai, que há pouco o levava à festa do Maracanã na última decisão de domingo.

Hoje, o pai é o retrato do desespero, da revolta, da inconformação... foi-se o seu orgulho; o amiguinho de campeonato de futebol, para quem preparava, satisfeito, a próxima festinha de quatro anos...

Morremos feito baratas porque nossas vidas foram reduzidas à banalização, à desimportância conferida à vida de uma barata. Baratas de esgoto. Morre uma, seja lá qual for - maior, menor; criança, jovem; velho, mulher, homem... Um a menos. Um número a mais na estatística. Um esquecimento a mais no mês que vem...

Com a superpopulação das cidades grandes, do mundo, nossa indignidade, nossa desimportância perante a visão das autoridades, que nenhuma medida de peso tomam para reverter o estado calamitoso no qual nos vemos mergulhados, em turbilhão... é a mesma de um inseto, de uma barata!
 
No mais das vezes, efetivamente, assistindo à frieza gélida das reações humanas, experimento a impressão tétrica de que existe, antes, alívio a cada tragédia, a cada vida desperdiçada... um a menos para nos preocuparmos... um a menos ao qual diz respeito direitos, deveres... direito à vida! Direito à felicidade!

Direito que Deus lhe deu!...

Um a menos!...

Apenas que não viemos à luz em produção em série. Não somos clonados! Nossa vida é única, exclusiva! Jamais há de existir um outro João Roberto exatamente como fora... com seu sorriso, seu lindo cabelinho preto, moreninho... lindo! Jamais!...

Eis aí a dignidade, a preciosidade da vida humana. A qual ninguém mais dá a menor importância!

Menos um...

Os países mais desenvolvidos que o nosso, caros, conquistaram esta posição não em estado de letargia. Todos, com certeza, tiveram seus períodos de luta, de barbárie, de corrupção e violência! Mas venceram essas deficiências - seus graves erros, suas batalhas contra os próprios deslizes,  exigindo e cobrando reconhecimento à própria dignidade!
 
Exigiram, pois, respeito e espaço à manutenção da sua dignidade, às condições dignas de vida! E chegaram lá! São países avançados, com qualidade de vida para os seus cidadãos. Porque aprenderam n'outras eras, e aplicam verdades banais que transmitimos a qualquer infante: não se mata, não se rouba, não se agride gratuitamente! Leis e regras de bem viver existem para ser respeitadas!
 
O seu direito termina onde começa o do seu semelhante!...

Simples assim...

Mas nós não exigimos qualidade de vida. Milhares de pessoas se amontoam em passeatas na zona sul do Rio a propósito de uma variedade inacreditável de frivolidades ou de questões outras. Parada gay; passeata pelo aumento de salário; passeata dos cachorros de madame; corridas de bicicleta; finais de campeonatos no Maracanã...F1!...

Todavia - coisa incrível! - não conseguimos reunir trezentas mil pessoas que se dizem indignadas no momento do calor da tragédia, no instante em que o trabalho da imprensa inflama os ânimos... nem nestes momentos!... para lutar nada menos do que pela
nossa sobrevivência!

A nossa sobrevivência!

Porque, caros, estamos em estado de guerra civil. Morre-se banalmente no Rio de Janeiro com estatísticas muito maiores do que a de países em estado de guerra. Entre outras coisas, porque dois policiais, em estando diante de um carro com insufilme nos vidros, não conseguem pensar o suficiente para lembrar que 
não lhes cabe o direito de execução pública de ninguém! Nem de bandidos! Quanto menos ainda a de uma mãe de família com seus dois filhinhos pequenos!

Horror! Catástrofe!...

Alguém pode aqui argumentar que por ser a enlutada mãe uma conhecida próxima, está aí a razão do meu desabafo, da minha revolta. A isto respondo: ledo engano, caros! Descabelei-me de chorar no caso do menino João Hélio. Até agora sinto taquicardia de desespero acompanhando o desenrolar do caso Isabella Nardoni... Quanto mais, então, não sentiria o drama horrendo vivido por alguém que me é tão próxima, do mesmo ambiente de trabalho?!!

Gostaria muito que os estudantes se recordassem da sua força! O povo também! Gostaria muito de que a população do Rio se convencesse de que dispõe de uma força titânica, se enfim se arredar da sua letargia diante de tantas tragédias sem fim para enfim urrar, protestar - entupir, sem aviso antecipado, as ruas da cidade numa movimentação gigante, de proporções épicas, diferente daquelas coisas mornas e apáticas controladas pela polícia e pelo poder público, com a finalidade de continuar mantendo a ira e a revolta popular sob controle, pretextando não tumultuar o trânsito!
 
Que se dane a hora de se chegar ao trabalho, que se dane o caos inusitado de um único dia em que a população afinal transbordasse das comportas a sua cólera, para gritar, estentóricamente, um BASTA! - tão escatológico, tão monstruoso e desesperado, que repercutisse em todo o Brasil, em todo o mundo!

Porque, caros, já vai longe a hora da nossa tomada de vergonha na cara. As autoridades têm culpa?! Sim - mas nós, talvez, detenhamos a parcela maior de culpa, em razão da nossa omissão conivente, da nossa declaração egoísta, descarada e tácita que, enquanto existir carnaval, futebol, churrascada, sexo e cerveja, tudo estará bem - afinal, "
ainda não aconteceu comigo!"

Mas até quando?!!...

Que Deus nos preserve, os revoltados, de um dia ter que pagar o alto preço da omissão cínica e da falta de percepção da maioria para um fato:
O RIO DE JANEIRO NÃO É O DO CARTÃO POSTAL! 

A realidade do Rio de Janeiro, para além deste verniz enganoso, é a face mais hedionda da desumanidade de suas autoridades de segurança, de seu povo bem humorado mas indolente - omisso diante dos problemas graves que assolam o dia-a-dia dos cariocas; pusilânime, a partir do momento em que se indigna por um dia, apenas, com tal gênero de terror, para daqui a uma semana estar discutindo mais uma final de Libertadores das Américas como se fosse isto a coisa mais importante deste mundo, desta cidade caótica, deste país de contrastes tão intoleráveis e de tantas misérias sociais e  humanas!

E o Secretário de Segurança pede desculpas à família como se estivesse lidando com uma pisada no pé!...

É esta a amarga, todavia sincera homenagem, que presto à Alessandra, a bela mãezinha do menino João Roberto, e ao seu esposo e familiares - todos cidadãos de bem, agora dilacerados de sofrimento!

Christina Nunes
 



Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 09/07/2008
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