Zênith

"Estar no mundo sem ser do mundo"

Textos


MEU EPITÁFIO 

Já agora se pode assistir nos cinemas o lançamento do clássico de Walt Disney, Alice - aquela personagem infantil que por um acaso começa a perseguir um coelho obsessivamente preocupado com a hora durante todo o tempo e vai parar num mundo fabuloso onde, entre outros personagens bizarros, existe um chapeleiro louco.

O chapeleiro louco olha para Alice, de sua mesa de chá posta onde se acomoda com um outro coelho esquisito, e já de cara desfecha:
- Quer mais chá?
Ao que a aturdida Alice devolve:
- Como hei de querer mais chá se ainda não tomei nenhum?!...

Existe um paralelo enorme de contexto entre esta situação e o universo profissional de todo aquele que trabalha em  ambiente corporativista. Explico-me.

Por que depois de um certo tempo determinadas exigências extemporâneas e linhas de conduta, senão de todos, mas talvez que de grande parte dos trabalhadores destes lugares onde a competição impera e grassa, traiçoeira, implacável como lobo esfaimado, acabam nos levando a pensar que passamos a maior parte do nosso tempo de vida útil imersos numa versão grotesca do País das Maravilhas?

Há um tempo atrás alguém do meu rol de conhecimentos, que trabalha há anos no regime escravocrata vigente nalguns modelos de fábricas e indústrias comentou acerca de uma reunião periódica havida com funcionários e membros de diretoria, durante a qual os objetivos parecem se resumir numa espécie de lavagem cerebral visando determinada forma de se pensar, semelhante à de um Chapeleiro Louco - visto afrontar, gritante, o lado natural e saudável das propensões humanas.

O palestrante iniciou a reunião com a pergunta fatídica:

- O que, para vocês, tem maior importância? A família ou o trabalho?

Ao que todos, unanimemente, afirmaram em resposta ser a família, a seu modo de ver, o fator de maior importância nas suas vidas - somente para logo em seguida ouvirem a primeira reprimenda e (duvidosa) cantilena, de molde a modificar-lhes aquilo que aparentemente configura, a estas mentalidades plenamente inseridas no contexto corporativista politicamente correto, um modo simplório de pensar:

- Nãããão! O mais importante é o trabalho!...

 E prosseguiram numa arenga cacete acerca de ser o trabalho o mais importante por ser, ele, a fonte de sustento da família, blá-blá-blá-blá...

Amigos... Vão me desculpar. Perdão mesmo, viu? Mas eu sou simplória! Convictamente - e ao menos nesta minha etapa aparentemente simplória de evolução mental, sentimental, espiritual, ou o que seja!...

Se devidamente dotada de verve numa tal reunião, e se trabalhasse num tal lugar, eu devolveria:

- Não! Desculpem; o senhor ou senhora pode estar coberto de razão! Mas em primeiro lugar está a minha família, e já lhe digo porque: porque dinheiro fornece o sustento; mas o principal alimento e sustento para os meus filhos, por exemplo, é de origem espiritual! É a minha presença! É a expressão viva do meu amor por eles, pessoalmente, e pelo máximo de tempo possível! É a convivência, senhores! E provas sobejam, de que todo o dinheiro do mundo não supre os estragos que a ausência faz na construção psicológica de filhos em fase de crescimento! Enquanto numa familia com dificuldades financeiras, vá lá, pode haver necessidades de ordem material, de ordem financeira... num ambiente familiar é da força do apoio mútuo, da convivência, que haurimos energias e saúde para se vencer desafios, transcender dilemas, solucionar problemas a contento!

Mas num ambiente corporativo típico, ao preço de se conservar status financeiros e empatias com chefias motivadas pela mesma diretriz polêmica, opera-se estranho fenômeno social! Muitos - senão a maioria! - denotam, por entre sorrisos de suposta superioridade profissional, que não! Não é assim!

- Ah, não, mas aqui ganha-se muito bem! Temos regalias, responsabilidades, compromissos! ...

Logo, faça-se o regime escravocrata! Sob uma tal ótica, vende-se a peso de ouro os momentos em família; a melancolia de crianças que mal convivem com mães e pais, com posteriores sequelas graves envolvendo processos de insegurança e desvios de comportamento na fase futura da adolescência! Relegam-se pais ou mães idosos a um quase descaso, em nome da urgência de se fazer dinheiro! Esquece-se de se viver: a necessidade psicológica de descanso e lazer, princípio comezinho de equilíbrio emocional e orgânico, é visto como fraqueza, desvalor, tendência franca ao ócio, que nada produz de útil!

E tome crise de valores éticos, aberrações comportamentais, caos social e desespero, sem que ninguém atine com o porquê - oculto num monumental curto-circuito global numa humanidade condicionada a viver em função de status, de dinheiro, e das frias comodidades deles advinda!

Deve-se, sempre, e isto sim, e sempre, fazer-se alguma coisa! Mais que os outros, de preferência! E provar-se a todo custo, nem que por meio de artifícios espúrios, que se faz mais e melhor! E criar filhos de dentro desta política neurótica: faça alguma coisa! Faça alguma coisa! Vá para o inglês, para o balé, para o basquete, para a informática, para a colônia de férias, para as feiras culturais!
 
Nós vamos para o trabalho, de sol a sol, praticamente despertando dentro do ambiente de serviço e de lá se retirando apenas para dormir! Mal se convive; mal se dialoga dentro do lar. Cobra-se apressadamente dos filhos acerca de notas e de deveres de casa, ao final de um dia desgastante; troca-se algumas poucas palavras com o marido ou a esposa acerca do que foi mais um dia de trabalho.
 
E isto é tudo!...

E passa, assim, a vida por nós, ou por outra, e melhor dizendo, passamos pela vida... sem nem dizermos à vida ao menos um alô!

E o que é a Vida, amigos?
 
O que é viver?!...

Perdoem-me, portanto, os corporativistas inveterados, que escarnecem de nossa simploriedade de considerar como algo grande o que, para eles, é pequeno, é destituído de valor, provinciano; é desprovido de maior importância - merecendo, na ordem das nossas prioridades e considerações práticas do dia a dia, quando muito, um segundo lugar!

Perdoem-me a rústica simploriedade!
 
Mas minha família, é em primeiro lugar!

Eis, aí, o meu epitáfio!

"Devia ter complicado menos,
trabalhado menos;
ter visto o sol se por!"
Epitáfio
Titãs
Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 29/04/2010
Alterado em 01/05/2010
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