Zênith

"Estar no mundo sem ser do mundo"

Textos


O GRANDE AGORA

Quando ultrapassamos os quarenta anos, o mundo em volta começa a se parecer com uma obra de Monet. As coisas são difusas, sem muita solução de continuidade, mais. A sabedoria divina se explica aí. Começa a nos preparar, paulatinamente, por intermédio do desgaste natural dos órgãos dos sentidos, para um novo prisma de percepção da Vida, quiçá mais exato, mais vívido, quando, afinal, destes sentidos físicos prescindirmos.

Natural. Ao deixarmos esta esfera densa tudo que encontraremos será a continuidade pura e simples; a simbiose contínua entre seres e coisas, a Unidade da vida em si. E tal perspectiva se reveste de grande beleza! Na certa é um treinamento. E ando treinando olhar deste modo para as cenas em torno da minha casa; para as árvores, casas e prédios, pessoas em movimento, portas e flores, como visões baças umas dentro das outras. Porque é assim que é: como bela, multicor pintura de Monet! Monet foi excelso aprendiz das Artes maiores do Universo!

Hoje, pois, depois do almoço, veio-me uma sonolência fora de propósito. A tarde era tranquila, meus familiares se ocupavam cada qual com um tipo de entretenimento. Descaí no sofá e, de entremeio a este estado de semi-consciência, puseram-se a flutuar ante a retina do espírito visões distantes.

De súbito me revia em cenas longínquas, diante do vai-vém das ondas do mar, numa praia do Rio de Janeiro, há muitos, muitos anos. O rumor hipnótico daquelas ondas espumantes, o silêncio aconchegante em torno, numa época em que ir às praias ainda significava travar contato íntimo e pleno com o aspecto mais mágico e sagrado da Natureza, avultaram aos meus sentidos como coisa acontecida há pouco. Efetivamente, lá estava eu correndo atrás das conchas multicoloridas trazidas pelas águas, para o encanto lúdico próprio da minha pouca idade. O ir e vir das ondas tépidas, o silêncio em volta, o soprar perfumado das brisas marinhas, os risos diluídos nesta atmosfera encantada...

Na semi-consciência em que me achava, ocorreu-me, estranhamente, e de entremeio à visão que me alçava suspensa em grato estado atemporal: quantas ondas já terão se esbatido naquelas areias, depois deste dia? E depois do último dia da minha infância em que lá corria, atrás de conchas e estrelas do mar? E qual teria, afinal, sido este último dia?...

Era um estado dalma muito peculiar. Não dormia propriamente, mas desligara-me completamente da realidade material mais imediata para me transportar para uma outra - não obstante, tão real quanto - que se pôs a me suscitar aquelas elucubrações sucessivas, extemporâneas.

Idéias desfilavam, plácidas, ininterruptas como os movimentos incessantes do mar; algo de dentro me sugeria, a certa altura: já parou para considerar devidamente o que seria deste tempo que evocas, especulando sobre a quantidade de ondas sucessivas depois daquele dia, se não houvesse nascer e se por do sol? Se não houvesse relógio, ou a contagem do tempo como o concebes? Aliás, já te detiveste a considerar por qual razão estranha de há tempos não consegues mais usar um relógio? Pensa: será que ainda existes, tu mesma, tal qual te concebias naqueles dias, assim como aquelas ondas? Reflete nisso, e descobrirás por qual razão te hipnotiza tão profundamente, te arrastando para esta dimensão mais vasta da Vida onde ora te achas, esta simples visão, associada aos sentimentos que dela se evocam?!...

Ainda existes, tu mesma, tal qual te concebias naqueles dias?!...

A resposta, atemporal como a visão daquele momento intenso, emergiu de si mesma, de abrupto, definitiva!

Claro que não existo mais! Nada restou; nem daqueles dias incipientes do começo da minha presente jornada corpórea, nem dos dias que vieram depois; de outras idas às praias ou às montanhas, ou onde quer que fosse! 

Nem de ontem!

Todo o corpo físico se renovou completamente! Não são mais os mesmos os ossos, as células ou os fios de cabelos! Os órgãos muito menos; avolumaram-se, cresceram! Outro o timbre da voz, outro o porte... O que sobrou?

O que restou daquela, a correr nas areias em meio às ondas, foi nada mais ou menos do que, perene, sobrevive a tudo! Ao ir e vir dos dias; aos acontecimentos destes dias; às consequências do modo como reajo aos acontecimentos havidos em todos os dias!

No grande agora!

Se não houvesse nascer e por do sol; a contagem convencional e inexorável dos minutos; dia e noite... fatalmente, amigos, a conclusão seria que resta de mim, como de vós mesmos, a permanência dentro da própria permanência - a consciência, presente naquela menina infante na praia quanto na mãe num almoço familiar de domingo, há pouco... dentro do grande agora!

As ondas iam e vinham no reconfortante silêncio da praia neste mesmo agora! E tudo que aconteceu desde então foram circunstâncias, que nos servem de parâmetro para a contagem de algo a que se definiu como tempo, mas, ainda e sempre, no uno agora - onde tudo eclode, simultâneo, caindo nas malhas efêmeras da transitoriedade para, uma vez resguardado nas ditas memórias Akásicas - acessadas de forma não tão diversa quanto a usada para acessarmos nossas próprias lembranças recentes - deixar lugar à essência: à única realidade maior em nós, que de fato fica: a eterna Fênix de nós mesmos!

As ondas foram e vieram; a menina risonha, correndo nas águas mornas daquele fim de tarde sob o cálido e radiante por do sol da então silenciosa praia do Recreio dos Bandeirantes, veio e se foi...

Eu não fui.

E hoje me reconheci dentro de um quadro de Monet...


Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 20/09/2009
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